A MULHER JUDIA (PARTE 1, 5780)- Estudo para 19 de junho de 2020 – 27 de Sivan de 5780

I. Do desconforto das mulheres judias à oração no Muro das Lamentações – Por Maria Wilton

Sendo a religião monoteísta mais antiga do Mundo, o papel das mulheres no judaísmo tem evoluído ao longo dos séculos. Atualmente, as duas maiores comunidades de judeus no mundo encontram-se nos Estados Unidos e em Israel.

Segundo os textos mais clássicos do judaísmo – não só a Bíblia, como também o Talmude e outros –, sempre existiram algumas diferenças entre os géneros. Nos primórdios dos tempos bíblicos, o casamento e a lei familiar favorecia os homens – por exemplo, o marido podia-se divorciar da mulher se quisesse, mas a mulher só se podia divorciar do homem com o seu consentimento. A literatura clássica, como o Talmude, tem várias citações que colocam as mulheres subordinadas aos homens. Mas o contrário, por vezes, também acontece, com as mulheres colocadas num patamar superior ao dos homens:

Maior é a recompensa dada pelo Todo-Poderoso à (justa) mulher do que ao (justo) homem;

Um homem sem mulher vive sem alegria, benção e bem; um homem deve amar a sua mulher como a ele mesmo e respeitá-la mais do que a ele próprio;

Dez formas de discurso desceram ao mundo, as mulheres ficaram com nove; As mulheres têm mais fé que os homens; As mulheres têm um grande poder de discernimento.

Conforme se lê no portal digital Judaism 101, o Talmude acentua os papéis da mulher como mãe, esposa e cuidadora do lar. As mulheres são desencorajadas de ir para o ensino superior, sob pena de negligenciarem o seu dever primário como mães e esposas. Como tal, tradicionalmente, a mulher judia estava dispensada de várias atividades religiosas que são apenas obrigações dos homens, para que os seus deveres de mãe não fossem comprometidos. Esta isenção diminui o papel da mulher na sinagoga, lugar da assembleia da comunidade, algo muitas vezes visto como menos importante que o papel dos homens no judaísmo. Aliás, para constituir tradicionalmente uma comunidade que se reúne numa sinagoga, são necessários pelo menos dez homens.

Rachel Adler, professora de Pensamento Judaico Moderno, teóloga e feminista, considera que muitas mulheres judias comprometidas com a sua fé se sentem “desconfortáveis com a sua posição no judaísmo”. No seu ensaio de 1971 The Jew Who Wasn’t There: Halacha and The Jewish Women(O Judeu que não estava lá: Halacha e as mulheres judias), Adler afirma que não se identifica com os estereótipos da mulher judia modesta e mãe. Analisa depois os preceitos de Halacha, as regras que devem ser seguidas para cumprir os preceitos da Torá.

Para muitos, esta perspetiva feminista foi considerada inovadora na desconstrução dos papéis de género no judaísmo. Recentemente entrevistada para um portal de notícias judaicas da Califórnia, Adler considera que é necessário inserir um olhar feminino na Torá e no Talmude, para que a Halacha se possa transformar num veículo de cura e não “numa ferramenta de opressão”. A professora comenta ainda que o movimento Me Too pode e deve encorajar uma revisão dos preceitos religiosos.

Do sexismo ortodoxo às primeiras mulheres-rabis – Hoje em dia, tal como em outras confissões, as diferentes correntes do judaísmo apresentam diferentes perspetivas do papel da mulher.

A ortodoxia judaica incluiultra-ortodoxos, ortodoxos e ortodoxos modernos. São, em geral, o ramo mais conservador dos judeus, as expectativas sobre as mulheres baseiam-se quase exclusivamente naquilo que está consagrado na Halacha. As vestes devem ser modestas, o cabelo tem de permanecer coberto e as regras acerca da escolaridade e do papel da mulher no lar são iguais às dos tempos bíblicos iniciais. Enquanto que muitas mulheres se conformam a este estilo de vida mais regrado, outras tentam explorar o âmbito em que se encontram, permanecendo nos limites da sua fé. Em Nova Iorque, duas irmãs criaram uma linha de roupa dentro das regras do judaísmo ortodoxo, para que as mulheres se pudessem sentir bonitas mesmo vestindo-se modestamente. No mesmo estado, três mulheres ortodoxas criaram uma banda de rock e dão concertos só para mulheres – algo a que as mulheres não podem normalmente assistir.

Num âmbito mais teológico, a americana Lila Kagedan, uma das poucas rabinas ortodoxas (ainda que o Conselho Rabínico dos Estados Unidos não a reconheça como tal) considera que é importante que se continue a insistir no acesso das mulheres ao rabinato: “O sexismo está muito presente na comunidade judaica. Este é um desafio que requer uma mudança cultural e filosófica radical para ser solucionado. Não é fácil conciliar filosofia antiga com valores contemporâneos. Mas agora, mais do que nunca, as mulheres líderes no judaísmo ortodoxo devem ser encorajadas a levantar-se e a ser bem sucedidas.” Se nos ramos mais conservadores a mudança ainda passa pelo papel da mulher na sociedade, nos ramos mais liberais as mudanças são perspetivadas a um nível teológico. “Apenas recentemente as mulheres se tornaram professoras de teologia, rabis e contribuidoras para a Halacha”, dizia também Rachel Adler.

Até ao Renascimento judaico (Haskalah) nos séculos XVIII e XIX, a ideia de mulheres rabis parecia remota. Mas, nas últimas décadas, começou a assistir-se à formação de várias mulheres em escolas de rabis. A maioria das mulheres-rabis hoje em dia foram consagradas em seminários conservadores, reformadores ou reconstrucionistas.

A primeira mulher-rabi oficial foi Regina Jonas, de Berlim Leste, consagrada a 25 de Dezembro de 1935 como rabi das comunidades judias da Alemanha. Nos Estados Unidos, o movimento Reformador ordenou a primeira rabina em 1972, o Reconstrucionista em 1974 e o conservador em 1985.

Rezar no Muro das Lamentações – Judeus a rezar no Muro das Lamentações: mulheres judias também querem ter acesso ao local em igualdade de circunstâncias … Nas comunidades conservadoras do judaísmo,a perspetiva é a de que a Halacha é vinculativa mas está sempre em evolução.

Em dezembro de 1977, uma assembleia de rabis e o Seminário Teológico Judeu criaram a Comissão para o Estudo da Ordenação das Mulheres como Rabis: daí a um ano, os onze membros concluíram não haver objeção à preparação e consagração de mulheres. Entre as comunidades reformadoras, desde o início que se permite a homens e mulheres rezarem juntos. À medida que o papel da mulher foi mudando na sociedade, durante o século XX, formou-se nos Estados Unidos o Conselho Nacional de Mulheres Judias, que permitiu a entrada das mulheres no rabinato. Os reconstrucionistas, finalmente, fundados por Mordecai Kaplan, um judeu estadunidense professor de teologia, têm mulheres rabis desde a sua formação, em 1968. Tal como os reformadores, acreditam que os homens e as mulheres têm direitos iguais, independentemente da Halacha.

Em Israel também tem havido mudanças. A organização Women of The Wall (WOW), um grupo fundado em 1988, defende que as mulheres devem poder rezar como um grupo (lendo a Torá) no Muro das Lamentações. Atualmente, a lei de Israel não permite que isto aconteça e uma mulher que o tente pode ser condenada a seis meses de prisão. As WOW integram milhares de mulheres de todo o mundo e de todos os ramos do judaísmo, incluindo ortodoxos. A 31 de Janeiro de 2016, o Governo israelita aprovou a criação de um espaço de prece igualitário onde mulheres judias (não-ortodoxas) e homens pudessem rezar no Muro das Lamentações. Esta decisão foi celebrada por vários líderes judeus mundiais e condenada por líderes ortodoxos.

Shoshana Gugenheim tornou-se uma das primeiras mulheres tradutoras da Torá em Israel e, em 2010, foi a líder do grupo de seis mulheres tradutoras The Women’s Torah Project. O projeto foi traduzido para a sinagoga Reconstrucionista de Seattle, em Washington (Estados Unidos). … [1]

II. Para que serve a mulher judia em Israel – Por Elena Judensnaider

O texto descreve a opressão a mulheres por meio do judaísmo ortodoxo que, apesar de restrito a grupos específicos, complementa o machismo secular israelense e serve aos propósitos do projeto sionista. Ele procura contribuir para desconstruir a falsa ideia inabalável da democracia judaica. O texto abaixo descreve a opressão a mulheres por meio do judaísmo ortodoxo que, apesar de restrito a grupos específicos, complementa o machismo secular israelense e serve aos propósitos do projeto sionista. Ele procura contribuir para desconstruir a falsa ideia inabalável da democracia judaica. Contudo, apesar de não discorrer sobre o assunto, parto do pressuposto de que qualquer corrente política que prega a eliminação de outro povo não poderia ser menos excludente. Se as mulheres judias são, por vezes, sexualmente reprimidas, elas podem também representar o agente opressor: as mulheres palestinas são duas, três, quatro vezes menos privilegiadas.

Elas sofrem por serem mulheres, por serem muçulmanas, por serem palestinas, por serem pobres. Me ative ao judaísmo porque sou judia e não pretendo falar sobre uma aflição que me é tão distante. Mas aproveito o espaço para prestar solidariedade às mulheres palestinas.
O machismo de Israel (ou porque você só percebe a opressão às mulheres árabes)

Bendito és Tu, A-do-nai, nosso D-us, Rei do Universo, que não me fez mulher. Este trecho faz parte da benção matinal judaica, que é recitada todas as manhãs por judeus, enquanto judias terminam a reza substituindo a parte destacada por que me fez conforme Sua vontade.
Eu cresci em um ambiente judaico praticante que, apesar de não ortodoxo, compartilhava espaços sagrados com famílias mais religiosas. Quando criança, me disseram para recitar a frase acima sempre ao acordar. Vi minha mãe ir ao mikvé, local em que acontece um ritual para purificação da mulher após cada menstruação e o nascimento de um filho. Vi minha avó usar peruca, porque judias religiosas não podem mostrar seu cabelo natural para qualquer homem que não seja da família. Fui convidada para casamentos de garotas de menos de 20 anos. Ouvi de professoras de escolas judaicas que as garotas não precisavam aprender tanto – afinal, logo casariam e teriam filhos e suas vidas se resumiriam a isso. Ouvi que os rabinos acompanhavam o ciclo menstrual das mulheres e as orientavam a ter relações conjugais com seus maridos nos dias férteis. Fui a sinagogas em que as mulheres se sentavam de um lado e os homens de outro. Em algumas, os homens ficaram no andar inferior, de frente à Torá (livro sagrado judaico), enquanto às mulheres ficavam reservadas poucas cadeiras, no andar superior, de onde mal se conseguia assistir às rezas.

Quando ia à sinagoga, eu tirava a roupa cotidiana e me vestia de acordo com a ocasião: precisava cobrir meu corpo entre os joelhos e os cotovelos, e pra isso tinha separados camisas três-quartos, saias que iam até depois do joelho e sapatos fechados. Eram as “roupas de sinagoga” e eu não questionava a mudança das vestimentas, considerando que se tratava de algo relacionado à etiqueta daquele lugar tão diferente da minha casa. Mas me deixava muito chateada que uma amiga ortodoxa da minha idade não pudesse assistir televisão comigo, e eu achava estranho que conhecidas mais velhas estivessem em vias de se casar com quem não conheciam.

Uma vez, ainda criança, reclamei para minha tia que tudo aquilo não era justo. Ela me respondeu firme, sem perceber a grande lição que estava me dando sobre relativismo cultural: “para elas, isso é felicidade”. Não pensei mais no assunto nos anos seguintes, procurando acreditar que minha tia estava certa. Mas ela, que é mulher e judia, vai lutar pela Palestina? Um familiar contou que ouviu essa frase, relacionada a mim, vinda de um funcionário de uma instituição judaica (não sei qual), quando teve conhecimento de que eu estava começando a militar a favor da Palestina. Imagino que ele não soubesse que, assim como eu estava me introduzindo e engajando na causa palestina, também me aproximava do feminismo. A verdade é que foi ótimo ter ouvido essa frase, pois ela me deu muito mais clareza para entender a necessidade de lutas transversais, ou seja: não adianta lutar contra o sionismo sem lutar contra o machismo; não adianta lutar contra o machismo sem lutar contra o racismo e por aí vai.

As lutas se complementam. Percebi que por ser mulher eu tinha ainda menos direito de me posicionar contra o sionismo e suas políticas fascistas. Isso se deve, além de ao machismo estrutural do qual os judeus não escapam, ao machismo particular reproduzido pelo judaísmo – principalmente o ortodoxo. Mas não é exatamente sobre isso que quero falar. Os grupos políticos ligados ao judaísmo costumam se colocar no campo ideológico oposto ao do islamismo, destacando principalmente os perigos que o extremismo islâmico pode representar para mulheres. Talvez, por isso, seja surpreendente que o judaísmo não seja isento de práticas religiosas e culturais que segregam as mulheres. A questão é: o julgamento de um grupo sobre religiões alheias é determinado pelo poder de que o grupo dispõe. Não, não se trata de campo ideológico. Trata-se de poder: ainda que a maior parte das religiões monoteístas seja patriarcal, quem tem poder, tem legitimidade pra exercer o machismo; quem tem mais poder ainda, pode exercer o machismo sem ser condenado internacionalmente.

Não estou, aqui, querendo comparar qualitativamente as obscenidades perpetradas pelo Estado Islâmico com aquelas cometidas pelos Haredim (judeus ortodoxos) ou ainda com o que pregam alguns líderes evangélicos no Brasil. Minha intenção é apenas a de demonstrar que os crimes à humanidade praticados por grupos religiosos não devem ser analisados na chave cultural (ou, ainda, moral), e sim na chave do poder. Porque eles existem em todos os grupos, mas o desenvolvimento ou a divulgação dos atos é proporcional ao seu poder, seja ele econômico, social, político ou militar.

É difícil nos distanciarmos dos paradigmas que o relativismo cultural nos impõe para discutir política, e isso inclusive dentro da esquerda: muito se confunde a defesa do oprimido com a defesa da cultura ou religião do oprimido, perdendo de vista as motivações de fato da opressão. É a condição social de origem dos imigrantes que determina a quem a xenofobia será dirigida. Na Europa, por exemplo, os russos que imigraram no início do século XX não sofreram o preconceito que os armênios sofreram em seguida e que os árabes sofrem hoje, justamente por conta de terem pertencido à elite em seu país de origem. Ou seja: poder.

Os Haredim – Em Israel, por exemplo, os ortodoxos judeus têm muito poder. Ainda que haja grande oposição ao extremismo religioso judaico dentro do país, a situação é especialmente preocupante devido ao interesse sionista nesse setor da sociedade. Para que o governo tenha legitimidade para reivindicar o território é importante que haja uma população predominante na região. Se formos considerar Israel e os territórios ocupados, a população judaica não chega a metade. Essa é uma questão que existe desde a partilha da Palestina: apesar de o plano conceder 53% do território aos judeus, havia, à época, 600 mil judeus e 1,3 milhão de árabes na região. De lá para cá, a questão demográfica passou a ter muita importância. Para resolvê-la, o governo israelense promove campanhas de Aliá, ou seja, a imigração de judeus para Israel, baseadas na Lei do Retorno, que permite a concessão de cidadania israelense a qualquer judeu do mundo. E é aí que entram os ortodoxos: com uma média de 6 a 7 filhos por família, os ortodoxos respondem a uma demanda urgente do Estado sionista de povoar e, consequentemente, controlar a região. Nesse contexto, e levando em consideração que, para o judaísmo, só é judeu quem tem a mãe judia, a mulher serve meramente como procriadora.

Para isso, como incentivo ao estabelecimento e procriação dos ortodoxos, o governo oferece a eles isenção de impostos; dispensa do exército e subsídios financeiros. Com isso, os ortodoxos têm muito poder. E, por ter poder, fazem mulheres serem detidas por rezar “como os homens”. Proíbem as mulheres de cantar publicamente, de aparecer em outdoors ou de ser premiadas. Colocam em circulação ônibus com divisórias, para que as mulheres se sentem na parte de trás e segregam as mulheres até nas calçadas. Agridem e chamam uma garota de oito anos de prostituta por não usar roupas “corretas”. Segregam as mulheres nas ruas. Apagam lideranças políticas mulheres de fotografias de grande repercussão mundial. Se recusam a sentar ao lado de mulheres em voos internacionais.

Sim, alguns desses casos são pontuais e não devemos generalizar a conduta de todo um setor da sociedade. Mas é importante notar duas coisas com relação aos ortodoxos judeus: a proteção institucional vinda do governo e a blindagem internacional vinda da mídia. Por que economizar a condenação moral, sempre tão bem-vinda à grande mídia, e ignorar uma problemática que é objeto de preocupação crescente entre os próprios israelenses? Enquanto isso, programas de propaganda sionista (conhecidos como Hasbará) continuam a divulgar: Israel é o país mais democrático do mundo. [2]

Fontes:
[1] Fórum, 10 de março de 2015: https://setemargens.com/do-desconforto-das-mulheres-judias-a-oracao-no-muro-das-lamentacoes/
[2] 7 Margens, 2 de marco de 2019: https://setemargens.com/do-desconforto-das-mulheres-judias-a-oracao-no-muro-das-lamentacoes/

Coordenador: Saul Stuart Gefter 27 de Sivan de 5780 – 19 de junho de 2020

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