A ÉTICA JUDAICA (5780) – Estudo para 28 de agosto de 2020 – 08 de Elul de 5780

I. Onde se origina a ética? Por Levi Brackman
É certo clonar pessoas? Existe algo como vida indigna de ser vivida? Quando é correto ir para a guerra? O terrorismo é sempre errado? Existe algo de errado com o casamento entre pessoas do mesmo sexo? O aborto deveria ser legitimado? A lista de dilemas éticos do Século 21 é interminável. O ponto chave sobre isto é: como, e baseados em quê, respondemos a estes dilemas éticos? Esta de fato é uma questão que preocupava os antigos filósofos. Na filosofia ocidental há geralmente três opiniões quanto à origem da ética.

Primeiramente há a “Teoria da Ordem Divina Sobre a Ética” que argumenta que a ética se origina de D’us – que aquilo que D’us ordena é arbitrariamente bom e ético. O contra-argumento a isto afirma que esta opinião leva ao absurdo onde D’us pode, em teoria, decretar que o adultério seja ético. Se alguém argumentar que D’us não pode fazer isto então está admitindo que os padrões éticos são estabelecidos por outro que não D’us.

Continuando a partir da “Teoria da Ordem Divina” há a “Teoria das Formas” apresentada por Platão, a qual afirma que há uma “forma” independente além de D’us que é o padrão absoluto da moralidade e da ética. O problema aqui é que este padrão absoluto jamais foi revelado a um mundo espacial-temporal, portanto jamais se poderia ter certeza de que alguém atingiu o padrão absoluto de ética. Nós portanto enfrentamos o dilema original: o que é ética?

A terceira opinião sustenta que todo o conhecimento é relativo ao indivíduo, e neste caso não pode haver moralidade absoluta: toda ética é relativa às circunstâncias, pessoas e culturas. Esta opinião também é problemática porque, levada à sua conclusão lógica, não existe ética de maneira alguma.2 Há um versículo enigmático na Torá que parece relacionar-se diretamente a este debate. D’us diz a Moshê: “Fala à toda a congregação dos Filhos de Israel, e diz a eles: Vocês serão sagrados, pois Eu, o Eterno seu D’us, sou sagrado.” A ordem “Vocês serão sagrados” suscita o debate entre os comentaristas. Alguns afirmam que isso significa que a pessoa deve ser particularmente cuidadosa em assuntos de moralidade sexual.4 Apoiando sua opinião no Talmud, outros declaram que se refere à necessidade de permanecer autodisciplinado até mesmo em assuntos que não têm proibição na Torá. De acordo com isso, “Vocês serão sagrados” implora que a pessoa seja sempre abstêmia e autodisciplinada quando se tratar de prazeres materiais.5 Interessante notar que esta interpretação do versículo é idêntica à opinião de Aristóteles sobre como a conduta ética humana deve ser determinada.

“Vocês serão sagrados pois Eu, o Eterno seu D’us, sou sagrado” pode parecer um argumento um tanto vago para a conduta ética; no entanto, encerra uma explicação bastante profunda sobre as origens da ética. Dus criou o homem “à Sua imagem”.6 Segundo os cabalistas, este versículo indica que D’us possui “atributos” (midot ou sefirot). No sistema cabalista há dez atributos Divinos, três dos quais intelectuais e sete emocionais. Deve-se notar no entanto que os atributos Divinos são perfeitos e infinitamente diferentes daqueles dos seres humanos.

Portanto, quando a Torá afirma que o fato de D’us ser ético (sagrado) é um motivo para os seres humanos serem éticos (sagrados), isso significa que a origem da moralidade vem do próprio D’us. A forma perfeita, o portador padrão para a moral perfeita – que Platão via como estando fora de D’us – na verdade origina-se dentro do próprio D’us.

D’us está revelando que as leis da ética que estão escritas na Torá não são apenas leis morais relativas ou uma análise intelectual da natureza humana levando a suposições educadas sobre o que é e o que não é ético. Ao contrário, as leis éticas encontradas na Torá são uma revelação Divina daquela perfeita forma Divina que é um paradigma para a conduta ética humana. De fato, não há maneira mais segura de ter certeza daquilo que é ético e do que não é ético do que ter o portador padrão da conduta ética revelado a nós.

Portanto, quando confrontados com os enormes dilemas éticos do Século 21, há apenas um local para onde nos voltarmos em busca das respostas: à forma perfeita que é a origem da ética, como manifestada na Torá. [1]

II. Impactos Da Ética Judaica No Se’culo XXI – Vivemos em um mundo extraordinário. Os acelerados avanços tecnológicos têm multiplicado a capacidade da humanidade de produzir bens e serviços.
As revoluções na informática, robótica, micro-eletrônica, biotecnologia, genética, comunicações e outros campos têm criado possibilidades econômicas inéditas.

Ao mesmo tempo, 30 mil crianças morrem diariamente devido à miséria, 800 milhões de pessoas estão desnutridas, 3 bilhões são pobres.

A polarização social tem alcançado índices absurdos. As três pessoas mais ricas do mundo têm um patrimônio maior que o produto bruto dos 49 países mais pobres. A América Latina, região de excepcional potencial econômico, rica em matérias-primas estratégicas, fontes de energia baratas e terras muito férteis, é vista hoje como a terra da pobreza e desigualdade. Sessenta por cento das crianças são pobres, 36% dos menores de 2 anos estão desnutridos, 1/3 da população não tem água potável. Junto a estes paradoxos extremamente impactantes, a sensação que o grande filósofo canadense Charles Taylor denomina de “o desencanto do mundo” se espalha entre as novas gerações.

A atual sociedade consumista, voltada aos bens materiais, à concorrência feroz para alcançar melhores posições, à luta pelo dinheiro e poder, gera uma sensação de solidão, que Victor Frankl chamou de um dramático “vácuo dos sentidos”.

As respostas a estes graves problemas não parecem claras. Cresce o ceticismo sobre até onde pode chegar uma globalização repleta de oportunidades tecnológicas, mas totalmente carente de um código ético que a oriente. Neste contexto, as propostas da ética judaica estão tendo valor crescente como referência e orientação. Muitas delas estão sendo retomadas com vigor por organismos internacionais, ONGs e movimentos que visam um mundo melhor.

Vejamos resumidamente o atual impacto de algumas destas propostas:
Um princípio básico da mensagem moral transmitido por D’us ao povo judeu é o de que somos responsáveis uns pelos outros. Para a ética judaica é proibida a indiferença ao sofrimento de outros. Diz-se no Levítico: “Não desconsideres o sangue de teu próximo” (19:16).

Nossa época carateriza-se por altas doses de egoísmo, daqueles que têm face aos que não têm, e de insensibilidade. O secretário geral da ONU, Kofi Anan, ao exigir recentemente que o mundo supere a indiferença diante da morte de 22 milhões de pessoas nos últimos anos por Aids, determinou que é imprescindível voltarmos a ser responsáveis uns pelos outros.
• Para a ética judaica, a pobreza não é um problema apenas dos pobres, mas de todos. Leibowitz observa que os profetas dizem “Não haverá pobres entre vós”. Não estão dizendo o que irá acontecer, mas o que deveria acontecer. Sua voz não é de oráculo, senão de exigência moral. Para que não haja pobres, a sociedade deve tomar algumas medidas. Diante daqueles que, na América Latina, atribuem a pobreza dos pobres a eles mesmos, o judaísmo se revolta porque considera tal atitude uma injustiça. Esta mensagem foi recentemente incorporada à Carta dos Direitos Humanos da ONU. Entre estes, foram incluídos os direitos básicos do homem a não ser pobre, à alimentação, à saúde, à educação, ao trabalho, à moradia entre outros. A partir de agora estes são direitos essenciais do ser humano, embora proclamados há milênios pela ética judaica.

• As grandes desigualdades são severamente censuradas pelo judaísmo. Os profetas questionaram-nas implacavelmente e julgaram moralmente os poderosos que as fomentavam. O judaísmo criou uma institucionalidade completa para prevenir as polarizações sociais. A Torá estabelece que a cada 7 anos a terra deve descansar para que os pobres possam aceder a seus frutos. A cada 50 anos a terra deve retornar a seus proprietários originais. Procura-se assim impedir sua monopolização. É o jubileu. Assim mesmo, a cada 7 anos as dívidas devem ser perdoadas. O grande movimento mundial vigente pelo perdão total ou parcial da dívida dos países mais pobres do mundo, encabeçado pelo Papa João Paulo II, apoiou-se nesta mensagem e intitula-se “Movimento do Jubileu”.

• Em recente pesquisa realizada pelo Banco Mundial, 60 mil pobres de todos os continentes disseram que o que mais lhes dói é o desprezo, o fato de serem tratados como pessoas inferiores por serem pobres. A Torá estabelece o mais absoluto respeito pelo pobre. É idêntico aos outros. D’us se preocupa especialmente por ele e exige este respeito. O Rabino Leo Baeck observa que no idioma hebraico não existe a palavra mendigo, por si só pejorativa. Esta determinação de se escutar e respeitar o pobre está sendo um eixo para a ação dos organismos internacionais.

• Como ajudar o desfavorecido? Este tema, discussão permanente nos organismos internacionais, foi analisado por Maimônides no século XII aplicado à ética judaica. O genial sábio identificou oito níveis sobre “a ajuda”. O nível inferior é quando ajuda-se alguém de má vontade. A segunda categoria é quando aquele que ajuda e aquele que recebe desconhecem um ao outro; neste momento, o anonimato que protege a dignidade do pobre é completo.

No entanto, o nível mais alto de todos, a melhor ajuda que alguém possa dar, é aquela que fará com que o necessitado não volte mais a precisar dela. Hoje, na ONU e nos principais organismos em prol do desenvolvimento, procura-se que os projetos tenham orientação no sentido de que haja sempre esta auto-sustentação enfatizada por Maimônides.

• Na ética judaica, ajudar os outros é um dever imprescindível. Como tal, não merece nenhum prêmio nem reconhecimento. O Rebe de Lubavitch observa que a ajuda deve ser desinteressada, não se deve esperar nada em troca e, exemplificando isto, destaca que no dia mais sagrado do judaísmo, o Dia do Perdão, nas orações sefaraditas pede-se perdão à D’us não só pelos prejuízos causados ao próximo, mas também pelos atos que não foram feitos desinteressadamente. O Rabino Abraham Y. Heschel diz que ajudar é simplesmente “o modo de viver correto”.

O prêmio está em viver-se desta forma. A força destes conceitos no judaísmo, seu contínuo ensinamento no âmbito familiar e na escola judaica assentaram as bases para grandes resultados em matéria de trabalho voluntário. Os países estão tentando dar forças ao voluntariado e vêem com crescente interesse os bons resultados. Israel e as comunidades judaicas têm índices recordes de trabalhadores voluntários. Em Israel, 25% da população pratica trabalho voluntário, produzem principalmente bens e serviços sociais que representam 8% do PNB. Exércitos de voluntários, de diferentes comunidades judaicas do mundo, trabalham diariamente levando adiante suas instituições e programas em proporção superior às médias de seus respectivos países. A conclusão é clara: a possibilidade de desenvolver o voluntariado está ligada à interiorização dos valores éticos pelas pessoas.

• Hoje vemos duas instituições fundamentais do judaísmo que são bases da sociedade: a família e a educação. O judaísmo lhes assegura o mais alto valor. A Torá dá especial destaque. A ética judaica zela vigorosamente pelas relações entre marido e mulher, pais e filhos, irmãos e até sogros, genros e noras. O Rabi Yoshua Ben Gamla criou no ano 69 a primeira escola pública de que se tem referência. Hoje, muitos países estão analisando como fortalecer a família, duramente deteriorada, e gerar educação. O judaísmo tem contribuições muito expressivas para oferecer nestes campos.

• Nas sociedades latino-americanas, entre outras, adota-se com frequência políticas que sabidamente irão significar grande sofrimento para a população, com o argumento de que “o fim justifica os meios” e que são necessários para que haja maior crescimento econômico. A ética judaica não aceita tal raciocínio. Na Torá pode-se ler textualmente que “o fim não santifica os meios”. Refletindo sobre esta diferença, Albert Einstein perguntava “Quem havia sido o melhor condutor dos homens, Maquiavel (autor original do princípio de que o fim justifica os meios) ou Moisés? Quem teria dúvidas sobre a resposta?”

• Como encarar a pobreza e a desigualdade na América Latina e no mundo? O judaísmo indica caminhos que ecoam de forma crescente. Para este, o problema deve ser encarado por uma ação conjunta de todos os agentes sociais. Cada um deles deve assumir suas responsabilidades. Necessita-se de políticas públicas muito ativas. O judaísmo criou a primeira legislação fiscal sistemática para uso coletivo, o dízimo. Por outro lado, a comunidade e a sociedade civil devem organizar-se e agir. E, finalmente, tudo isso não exime cada pessoa de individualmente fazer o correto em cada situação de miséria ou injustiça com que se depare.

• Uma ideia central do judaísmo é a de Tikum Olam – ajudar a consertar o mundo. O Rebe de Lubavitch faz menção a uma simples interpretação de um conhecido episódio bíblico. Depois de sair do Egito e atravessar o deserto, quando os judeus se aproximam de Canaã, Moisés envia 12 exploradores. Ao regressarem, 9 deles desestimulam as pessoas, dizendo-lhes que não continuem. Com frequência são considerados traidores. O Rebe observa que Moisés escolheu os melhores de cada tribo, eram pessoas excelentes; porque iriam ser desleais? O que ocorreu é que encontraram-se com sociedades perdidas na luxúria, corrupção e idolatria. O povo judeu, no deserto, era em contrapartida um povo espiritual entregado ao estudo da Bíblia. Temiam que seguindo para Canaã pudessem ser contaminados. Mas, se equivocaram disse o Rebe, pois o desejo de D’us era diferente. O que D’us queria não era que se recolhessem para conservar sua pureza e sim que levassem a espiritualidade aos mundanos, que difundissem os valores éticos nas sociedades infestadas de vícios. Em uma época como a nossa, em que tantas ideologias tombaram, a proposta do judaísmo de avançar até que o mundo se redima eticamente – e de que não é permitido ficar à deriva, mas sim agir para transformá-lo e lhe dar valores éticos – prevê grande duração e diz muito a todos os homens e mulheres empenhados em uma humanidade melhor.

A ética judaica está viva e fresca, podendo ajudar a enfrentar o “desencanto do mundo”, o “vácuo dos sentidos” e a inadiável conscientização dos paradoxos da grande pobreza em meio à riqueza potencial que particularizam a América Latina e o mundo.

A mensagem deste conjunto ético foi dita pelo sábio do Século I, Hillel: “Se eu não for por mim, quem o será?” significa dizer que todos devemos defender nossa saúde, nossa vida, nossa família; somos insubstituíveis nisto. Mas, acrescentou: “E se eu for somente para mim?”, significando que a vida sem solidariedade, responsabilidade pelo destino de outrem, amor ao próximo, transcedência, não faz sentido. Finalizou: “Se não agora, quando?” O que espera a ética judaica de cada um de nós é que entremos em ação, agora!

Bernardo Kliksberg é presidente da Comissão de Desenvolvimento Humano do Congresso Judaico Latino-americano; assessor da ONU, OIT, UNESCO, UNICEF entre outros organismos internacionais. [2]

Fontes: [1] Coisas Judaicas, Janeiro 2016: https://www.coisasjudaicas.com/2016/01/onde-se-origina-etica.html
[2] Morasha, Edição 34 – Setembro de 2001: http://www.morasha.com.br/etica/impactos-da-etica-judaica-no-seculo-xxi.html
Coordenador: Saul Stuart Gefter 08 de Elul de 5780 – 28 de agosto de 2020

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