OS JUDEUS E A MEDICINA (Parte 2, 5779) – Estudo para 01 de Fevereiro de 2019 – 26 de Shevat de 5779

I. I. Bioética, Medicina e o Judaísmo – Por Nelly de Souza Lopes – 2001, Professora de Judaísmo na Congregação Israelita Paulista

Introdução – A exposição que se segue não pretende ser exaustiva acerca dos temas apresentados sobre bioética embora pretenda dar uma visão das posições adotadas, de forma geral, pelo judaísmo. As diferentes correntes judaicas só serão mencionadas caso suas posições sejam muito divergentes do judaísmo normativo. Abordando tais questões pelo viés mais ortodoxo pretendemos estabelecer como clara a existência de uma ética judaica, cuja presença é sentida para além das divergências sobre a prática da lei judaica entre os diversos movimentos. As citações são, em sua maioria, de textos tradicionais, cujo título em hebraico será mantido. Portanto, ao tratarmos do Pentateuco iremos utilizar sua terminologia tradicional, Torá, mas os versículos específicos terão o livro indicado com o nome em português visando maior acessibilidade ao leitor e à leitora. A distinção entre Torá e halachá é que a primeira é a fonte da segunda, que é a sistematização e a ampliação daquilo que está na primeira e que continua até hoje, seja em codificações das leis da Torá e do Talmud (como o Shulchan Aruch), seja em responsum rabínicos. As discussões e a ampliação da Torá estão, em grande parte, escritas no Talmud (obra concluída no século V, composta de duas partes, Mishná e Guemará) mas não se limitam de forma alguma a ele. Além disso, parte importante da tradição judaica se encontra na coleção de obras denominada midrash que são as interpretações dos rabinos acerca do texto bíblico. Muitas histórias de vida de rabinos também estão coligidas no Talmud e nos midrashim (plural de midrash).

É deste triângulo (Torá, Talmud, halachá) que saem as decisões rabínicas acerca das questões atuais. Optamos por colocar o termo mitzvá no original em hebraico, para ressaltar que seu espaço semântico é maior do que o termo mandamento pode sugerir, saindo da mera esfera da decisão legal e ampliando-se para obrigação moral. Os temas que serão abordados através da formulação de uma pergunta clara e são, em linhas gerais, os seguintes: transfusão de sangue, doação de órgãos, aborto, inseminação artificial, eutanásia, saúde do idoso, clonagem e terapia genética.

I – A importância da vida e outras afirmações básicas do judaísmo – Um dos maiores valores na tradição judaica é o valor intrínseco da vida humana, que é comparada com o universo: “Quem salva uma única alma é como se salvasse todo o universo” (Mishná San’hedrin 19b). Para a salvação de uma alma, todas as proibições contidas na Torá, menos três, estão suspensas. Estas três são idolatria, incesto e homicídio (o suicídio recai numa categoria particular de homicídio). A ação positiva do ser humano sobre a Terra é expressa pelos seguintes trechos: “O mundo se mantém sobre três coisas: o estudo da Torá, o serviço religioso e os atos de benemerência” (Mishná Avot 1:2). Ou seja, o mundo não existiria se nós, seres humanos, não agíssemos positivamente em relação a nós mesmos: na esfera pessoal, buscando crescimento espiritual no estudo da Torá; na esfera transcendente, buscando crescimento espiritual na relação com D-us; finalmente, na esfera interpessoal, buscando crescimento espiritual nas relações pessoais que estabelecemos ao longo da vida. E esta exigência da ação no mundo é ainda mais reforçada pelas palavras “não confiamos em milagres” (Kidushin 39b-40b).

Esta última frase é muito aplicada no contexto patológico, incitando-nos a ir em busca daquilo que há de mais avançado na medicina para conseguir a salvação de uma vida humana. Além disso, a crença em que D-us é único e que todas as coisas da nossa vêm Dele é expressa todos os dias pela bênção “Bendito é Você, Eterno … que faz tudo o que eu preciso” e relembrada no livro de Josué (23:15) “E acontecerá: da mesma forma que todas estas boas coisas aconteceram para vocês … assim trará o Eterno todas as coisas más”. É a partir destas considerações preliminares que iremos abordar os temas a serem expostos.

A eutanásia voluntária é tida como suicídio. O suicídio é uma forma muito mais trágica de homicídio, segundo o rabino Bleich, em muitos aspectos. O primeiro e mais contundente é que não há qualquer tipo de reparação ou arrependimento possível.

Além disso, é uma expressão de completa falta de crença em uma outra vida, que é um dos pilares fundamentais da fé judaica e uma afronta ao fato de que a decisão de morrer não foi posta em nossas mãos: “Contra sua vontade você nasceu e contra sua vontade você morrerá” (Mishná Avot 4:22). A respeito da eutanásia ativa, seja voluntária, não-voluntária ou involuntária, a halachá é inequívoca: “Uma pessoa na categoria de gosses (4) qualquer um que a toque de forma a apressar sua morte é culpado de assassinato. Uma pessoa que mata uma outra, esteja ela sadia ou doente e morrendo, mesmo se matou alguém na categoria de gosses, é punível com a pena capital”(Shulchan Aruch, Ioreh Deah 339:1). A regra não permite exceções, não importa se o paciente sofre ou mesmo se ele consentiu.

A eutanásia passiva é a que nos irá dar mais campo para discussão. Devemos considerar, inicialmente, o seguinte trecho do comentário de Rabi Moshé Isserles (Cracóvia séc. 16) ao trecho anterior do Shulchan Aruch: “De forma semelhante é proibido fazer com que uma pessoa que está morrendo morra mais depressa, como exemplo, um gosses que está assim há muito tempo e não consegue se separar do mundo dos vivos: é proibido remover o travesseiro dele, mesmo que pessoas afirmem que algumas penas de determinadas aves estejam causando tal demora, da mesma forma é proibido movê-lo ou colocar sob sua cabeça as chaves da sinagoga para que ele parta.

Porém, se há algo impedindo que ele parta, seja um barulho perto de sua casa como o de um cortador de madeira, seja se colocaram sal sob sua língua, e essas coisas estão impedindo-o de partir – elas podem ser removidas, uma vez que não há um ato voluntário como tal, apenas a remoção do hassarat monea, o obstáculo.” (Comentário de Rabi Moshé Isserles ao Shulchan Aruch, Ioreh Deah 339:1). Perceba-se que a distinção que se faz aqui não é entre um ato e uma omissão e sim entre duas ações – uma que apressa a morte do paciente e outra que é meramente a remoção, no ambiente onde o paciente se encontra, de algo que impede que a alma do paciente parta.

Esta passagem aponta para uma questão extremamente dolorosa para a família de uma pessoa que está morrendo mas cuja morte é impedida pelo uso de máquinas que mantém o corpo funcionando através de respiração artificial – é possível desconectá-la? Pela analogia que podemos fazer com comentário de Rabi Moshé Isserles, sim – a partir do momento que se torna claro para os médicos que não há qualquer forma de curar o paciente (5).

É possível cessar o tratamento de pacientes próximos à morte? Uma autoridade do século 18, o rabino Iaacov Emden escreve em uma responsa que se o paciente sofre de uma doença identificada cujo tratamento é conhecido e testado, os médicos são obrigados a fazê-lo passar pelo tratamento, mesmo que o paciente afirme que prefere morrer a tratar-se – o elemento da dor não é relevante neste caso. Já no século 20, o rabino Moshé Feinstein legisla que mesmo se só houver uma grande chance de que o tratamento funcione, os médicos estão obrigados a isso e que mesmo se a chance for pequena, mas ela existir, é possível correr o risco para tentar conseguir curar-se.

Na mesma corrente, o rabino Shlomo Zalman Auerbach afirma que, se um tratamento que não vai curar um paci-ente mas só prolongar seu sofrimento não pode ser mantido, um tratamento que causa um aumento da dor e do sofrimento deve ser interrompido. Este não é o caso de um estado vegetativo permanente no qual o paciente não sofra e não seja mantido por aparelhos. Em caso de tratamento com drogas, uma distinção é feita entre o tratamento que tem como objetivo prolongar a vida do paciente ainda que temporariamente e o que tem objetivo de apenas diminuir a dor e o sofrimento. Para o rabino Moshé Feinstein, é preferível o último tratamento, desde que ele não diminua a vida do paciente em nem mesmo um dia (o que levanta questões acerca da permissibilidade do uso de morfina, que diminui progressivamente a capacidade respiratória do paciente).

Quais as conseqüências da aceitação do suicídio assistido? Ainda que se admita que para alguém considerar a hipótese de terminar com sua vida prematuramente ele/a deve estar sentindo uma dor muito forte, os rabinos encaram este ato apenas como mais um tipo de suicídio, apenas agravado pela presença do médico cujo dever é salvar vidas e não apressar seu fim. Na Holanda, de acordo com o psiquiatra Herbert Hendin onde a eutanásia com o consentimento do paciente não é crime, as distinções entre a real vontade do paciente, a da família, a do médico e a da sociedade se tornam cada vez menos claras. Além disso, a impressão que poderíamos ter é a que a legalização do suicídio assistido afeta apenas quem escolhe morrer, o que é uma falácia pois quem escolhe permanecer vivo não terá a assistência necessária – o que inclui não apenas aqueles sofrendo de doenças terminais mas também os idosos. Todos serão vistos, mais cedo ou mais tarde, como inúteis à sociedade.

É muito complexo dar a possibilidade de um ser humano, um médico, decidir qual o valor de uma vida humana. Infelizmente a história humana já viu muitos povos sofrerem com o racismo e a eugenia feita através da eutanásia de deficientes físicos e/ou mentais. Entre os muitos casos de martírio, o Talmud nos conta da morte de Reb Chanina ben Teradion, executado por romanos. Por ensinar a Torá, algo que era proibido, ele foi morto sendo queimado vivo amarrado com um rolo da Torá. Seus alunos estavam presentes e perguntaram a ele o que ele via, ao que ele respondeu que enquanto o rolo da Torá se consumia, as letras flutuavam no ar. Seus alunos começaram a pedir que ele inalasse mais e mais a fumaça, de forma a morrer mais depressa e sofrer menos e o rabino respondeu: “que Quem me deu a minha alma a pegue de volta – aprendemos que ninguém pode machucar-se propositalmente”. Esta, certamente, é a opinião do judaísmo acerca do suicídio.

V – Genética e clonagem – É permitido beneficiar-se das descobertas da engenharia genética e da clonagem? Pesquisas em genética são, de forma aberta e positiva, aceitas pelo judaísmo – principalmente no que se refere à determinação da paternidade. Já nas fontes mais antigas encontramos algum material sobre genética, ainda que não com esse nome mas, certamente, com as regras da genética mendeliana sendo trabalhadas por Jacó (Gênesis 30:22 e seguintes). A hemofilia é descrita com sua transmissão genética no Talmud (Ievamot 64b), onde lemos que os sábios reconheciam que a mãe transmitia a doença mas não sofriam dela. No mesmo trecho, os homens são proibidos de se casarem com mulheres de família de epilépticos, para que a doença não fosse transmitida para as gerações seguintes. O comentarista Rashi expande esta proibição para todas as doenças de caráter hereditário – o que pode representar a primeira forma de eugenia, desta vez possível. De forma completamente divergente do pensamento da idade média, o Talmud já afirma que há três parceiros na criação de um ser humano: Deus, a mulher e o homem, colocando que a mulher e o homem fornecem partes que se complementam para a formação de um corpo (Nidá 31a).

Em seu testamento ético, Reb Iehudá o Piedoso (século 10) proíbe casamentos entre primos de primeiro grau e entre sobrinhas e tios, dada a frequência de nascimento de crianças defeituosas de tais casamentos. Contudo, tais casamentos são expressamente encorajados no Talmud (Ievamot 62b e San’hedrin 76b). O sábio Maimônides reconhece defeitos hereditários e genéticos e afirma não poder curá-los (cf. Mishne Torah, Deot 4:20). As buscas por tratamentos na área de saúde que aprimorem ou possibilitem a cura de seres humanos são vistas como divinamente ordenadas por vários rabinos.

É assim que Nachmânides no século 13, e o Rabino Samsom Raphael Hirsch, no século 19, interpretam o versículo “encham a terra e a dominem”(Gênesis 1:28). Além disso, como alegado pelo Rabino Azriel Rosenfeld (6) , a Torá não proíbe ao processo que não são vistos a olho nu – por exemplo, as leis alimentares não são aplicam a microorganismos. A terapia genética se descoberta como solução para casos como a doença de Tay-Sachs é abertamente estimulada. Contudo, o rabino Moshé Hershler nos admoesta contra não nos tornarmos completamente cegos pela engenharia genética e pela terapia genética, lembrando que elas não podem ser tratamentos que diminuam a vida do paciente. Este rabino proíbe a terapia e a engenharia genéticas com base na falta de crença nos caminhos divinos e dá como prova o texto de Levítico 19:19 –
“não permitirás que se ajuntem misturadamente os teus animais de diferentes espécies; no teu campo não semearás sementes diversas, e não vestirás roupa de diversas linhas misturadas”, mas tal opinião é contradita pela maioria dos rabinos.

Clonagem é um processo até hoje não muito bem claro e que não chegou a ser reprodutível em outros laboratórios que não o inicial (7). Contudo, alguns rabinos já começaram a estudar esta questão e dão alguns pareceres. A priori, o papel do ser humano é melhorar o mundo. Além disso, nada do que não está proibido pela Torá é proibido, contanto que três regras sejam observadas: não pode ser feito caso haja alguma proibição descrita na lei judaica, não pode trazer um resultado irreversível que seja proibido, o ato deve beneficiar a raça humana como um todo, ou pelo menos trazer mais benefícios do que dano.

Não há qualquer ponto que apareça como uma proibição para a clonagem, contudo, a questão do parentesco do clone não está bem definida ainda, bem como o grau de habilidade para a vida (seja o envelhecimento, sejam características psico-biológicas). Não há, pelo judaísmo, qualquer forma de diminuição da fé que depositamos em Deus com a clonagem. Se houver qualquer chance de avanço no tratamento de doenças consideradas fatais, há uma admoestação para que as pesquisas continuem sendo feitas, ainda que in vitro. Pesquisas médicas com seres hu-manos devem ser cercadas de todas as precauções possíveis para que não sejam transformadas em mera manipulação de cobaias.

Conclusões – Mais do que um trabalho técnico, pretendemos indicar que a ética judaica permeia as decisões rabínicas em todas as questões apresentadas. Além disso, onde foi possível fomos buscar as fontes exatas das citações apresentadas na bibliografia.

Pedimos desculpas nos trechos que, evidentemente, isto não foi possível. Gostaríamos de notar que, apesar da ética, a vontade do paciente não tem um grande peso quando se trata de casos de salvar a vida e sua autonomia nas decisões é bastante pequena. O suicídio assistido é, como todo suicídio, visto como até pior que o homicídio dado que não há qualquer possibilidade de arrependimento por parte do falecido. O ponto de partida do judaísmo é a santificação da vida enquanto feita à imagem de D-us e o consequente dever de preservar a vida. O limite desse dever é dado quando o paciente está próximo do fim e seus últimos momentos são de dor e sofrimento – eles não devem ser agravados. Esperamos e pedimos que não seja remoto o momento no qual todos os seres humanos sejam agraciados com boa saúde e bom entendimento para que questões como essas não sejam mais relevantes. NOTAS: … [1]

II. A Verdadeira Medicina Judaica – Pergunta: Durante todo o processo do desenvolvimento humano surgiram vários tipos de medicina, como, por exemplo, a milenar medicina chinesa: acupuntura, reflexologia, fitoterapia, e assim por diante. A Ayurveda tem 3500 anos: aromaterapia, yoga e o sistema de Chacra. O povo judeu já existia há mais de 5000 anos. Qual é a sua contribuição para o desenvolvimento da saúde?

Resposta: É a sabedoria da Cabalá. Ela mantém o equilíbrio da pessoa com a natureza. E não há medicamentos, massagens, agulhas, velas, ou fragrâncias. Não estou menosprezando nada, mas simplesmente dizendo que elas têm um impacto mecânico secundário, embora haja também um significado psicológico nisso.

Sabe-se que na medicina Talmúdica, todos os tipos de substâncias biológicas são utilizados. Mas a verdadeira medicina judaica em si é apenas uma preparação interna dirigida ao equilíbrio do ser humano dentro de nós, e não o animal, mas especificamente o ser humano dentro de nós, ao equilíbrio do meu ego com a natureza, a sua correção. A Cabalá diz que toda vez que eu descubro o ego dentro de mim, eu tenho que estar num movimento interno para equilibrá-lo, ou seja, corrigi-lo.

Ele vai para cima e para baixo como uma bóia na água, e eu me preocupo o tempo todo em como corrigi-lo. Dessa forma, eu chego a uma saúde ideal e absoluta.

Mas isso envolve todo um sistema de trabalho educativo, que os antigos judeus realizaram através de uma extensa educação e formação. Nunca houve ninguém entre eles que não soubesse ler e escrever ou não estivesse familiarizado com o sistema do seu organismo, o sistema do mundo a sua volta, sua interação com a sociedade e o mundo circundante. Todas as leis descritas no Talmude e em outros livros antigos foram aceitas depois em todo o mundo através dos gregos e romanos. Todas elas são manifestações externas do que era praticado entre os judeus.

Mas eu volto a salientar que toda a medicina é construída no equilíbrio do meu “eu” egoísta com a natureza altruísta, ou seja, na correção do meu “eu” interior.

Portanto, “amarás o teu próximo como a ti mesmo” é a lei essencial da saúde física, espiritual, externa e interna. [2]

Fontes: [1] Legal Saber: http://www.legalsaber.com.br/alimentacao-saudavel/
[2] De KabTV “A Medicina do Futuro” 07/04/13: http://laitman.com.br/2013/04/a-verdadeira-medicina-judaica/

Coordenador: Saul S. Gefter, Diretor Executivo 26 de Shevat de 5779 – 01 de Fevereiro de 2019

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